I
Os adultos escutam palavras, sem ouvi-las.
Os adultos lêem palavras, sem senti-las.
Os adultos pronunciam palavras, sem degustá-las.
Os adultos escrevem palavras, sem cheirá-las.
Quando os adultos conversam, não cuidam das palavras,
por isso as palavras se enfraquecem de solidão e
tristeza.
Os adultos usam palavras, sem amá-las.
Assim as palavras se deformam e envelhecem.
As crianças são diferentes. As crianças brincam com as
palavras.
A brincadeira conserta as palavras deformadas. A
brincadeira
desenferruja as palavras velhas, devolvendo-lhes o
brilho juvenil. A
brincadeira gera novas, incríveis, incrivelmente belas
palavras.
As crianças escutam as palavras. As palavras são a
música
das vozes humanas.
As crianças sentem as palavras: são moles? duras?
redondas? pontiagudas?
As crianças degustam as palavras: são doces? salgadas?
ácidas? amargas?
As crianças cheiram as palavras. As palavras são pólen
sobre as flores das
coisas.
As crianças amam as palavras. Por isso, as palavras
também amam
as crianças.
II
Os adultos observam cores, sem vê-las.
Os adultos percebem formas, sem compreender sua
linguagem.
Os adultos vivem na luz e da luz, sem cuidarem dela.
Os adultos arrastam grandes sombras, sem brincar com
elas.
Os adultos ocupam bastante (mas muito) espaço,
sem se assustarem uma única vez com sua imensidão.
Os adultos observam o mundo com os olhos fechados. Por
isso o espaço
se reduz, as sombras morrem, a luz escurece, as cores
empalidecem e as
formas emudecem.
As crianças são diferentes. As crianças contemplam o
mundo com os
olhos abertos de par em par e admiram as coisas. As
crianças brincam
com as cores e as formas. A brincadeira separa o pó
das cores pálidas
e lhes devolve o brilho original.
A brincadeira gera novas, nunca vistas e incríveis,
incrivelmente belas formas.
As crianças vêem as cores. As cores são a infância da
luz.
As crianças entendem a linguagem das formas: são
suaves?
agudas? vivas? melancólicas?
As crianças sentem, as crianças respiram, as crianças
vêem a luz invisível.
A luz é a mãe do mundo.
As crianças arrastam sombras pequenas, mas brincam com
elas.
As sombras são cegas, por isso a luz as leva pela mão
como se fossem crianças.
As crianças admiram o espaço de sua imensa liberdade.
As crianças amam as pinturas.
Por isso as pinturas também amam as crianças.
III
Todo poeta é uma criança grande.
E toda criança é um pequeno poeta.
Todo pintor é um aprendiz grande. E toda criança é um
pequeno pintor.
IV
Esta mensagem tem o temperamento de um poema, de uma ode à infinita
capacidade criativa das crianças. Contudo,
lamentavelmente, não posso
concluí-la como um poema. Há muito sofrimento de
crianças para poder
calá-lo. Por isso vou deformar o final deste poema.
Por responsabilidade pelo
destino das crianças e pelo futuro deste, nosso único
mundo.
Visitei Sarajevo durante a cruel ocupação daquela bela
cidade. Em meio às
horríveis cenas de destruição que mais me comoveram e,
por sua vez, me
alegraram, foram precisamente as crianças: eu as via
por todas as partes, em
todas as esquinas, como brincavam, como corriam atrás
da bola, como se
escondiam e perseguiam, e com pedaços de pau
improvisados brincavam de
guerra. Inclusive durante os tiroteios, dos adultos,
com absoluta seriedade.
Toda vez que observava isto, me dava calafrios, já que
as posições mais
próximas dos franco-atiradores estavam distantes
apenas cem ou duzentos
metros. E já se sabe com que frequência os
franco-atiradores disparam para
estas pequenas cabecinhas! Esse crime é o mais infame
e repugnante desta
guerra! Como é possível que um adulto conscientemente
dirija a mira
telescópica para uma criança? Aqui se acaba o mundo!
Retiveram-me sentimentos encontrados: junto ao temor por suas vidas compreendi
a
profunda necessidade de brincar das crianças de
Sarajevo. Depois de
milhares de dias de guerra, de milhares de noites
escondidas em sótãos (para
as crianças todos os dias são infinitamente longos), o
instinto infantil de mexer e brincar tinha prevalecido. Simplesmente tinham que
sair para o
quintal e para a rua, correr e satisfazer sua
necessidade de brincar!
Bem que eu mesmo quando criança (depois da Segunda
Guerra Mundial)
muitas vezes “brinquei de guerra”. Eu me estremeci ao
ver as brincadeiras
das crianças de Sarajevo, porque seus brinquedos, como
sabemos, refletem
as relações da sociedade “adulta”, os rifles de
madeira mostram a guerra em
toda sua crueldade! Que traumas levam as crianças de
hoje que crescem na
guerra! Na Bósnia, Ruanda, Somália, no Oriente Médio, no
Curdistão e na Chechênia.
Que esta mensagem sobre a criatividade das crianças
conclua também como
uma defesa do direito fundamental à brincadeira. E
como uma advertência
extremamente séria aos adultos, que transformam sua
infância em inferno.
Vamos fazer tudo que está em nosso poder para que
acabe o sofrimento das
crianças! Para que as crianças não amadureçam antes do
tempo!
Disso depende o futuro deste, nosso único mundo.
Mensagem do Dia
Internacional do Livro Infantil do IBBY - International Board on Books for
Young People, 2 de abril de 1997, de autoria de Boris A. Novak, publicada e
divulgada, no Brasil, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil –
FNLIJ, seção brasileira do IBBY. Notícias nº 1, v.19, janeiro de 1997,
traduzida, do inglês, por Ninfa Parreiras.