Páginas

Translate

domingo, 13 de agosto de 2023

Para lembrar o meu pai

Para lembrar o meu Pai

 
           Ninfa Parreiras

 
Para lembrar o meu pai, chegam livros, dicionários, enciclopédias. Caminham pela casa da rua Getúlio Vargas.
Ora ele se debruçava, ora ele se escondia, ora ele abraçava seus volumes de papel e de tinta. Tudo que é livro, papel, impressos, vem sempre associado a ele.
 
Para lembrar o meu pai, deslizam histórias, causos, versos. Da caneta tinteiro, sua letra em traços de ondas de montanhas... bordava estampas em páginas brancas, quadriculadas, linhas.
Ele escrevia sobre qualquer superfície, inclusive agendas antigas, papeis de embrulho.
 
Para lembrar o meu pai, desdobram-se listas: de nomes de gente e de lugares, de plantas, de bichos, de enfermidades, de palavras esquisitas, de infinitas coisas.
Hoje, vejo livros de listas publicadas, algumas poéticas, outras engraçadas, e edito, na imaginação, as listas do pai.
 
Para lembrar o meu pai, me despertam jornais para o café da manhã: faça frio, faça calor, chova... Voz do Município; Folha do Oeste; Brexó; Tribuna Itaunense; S’passo...   
Folheio tantas linhas do tempo e Itaúna está jovem e próspera. Jornais, periódicos, rádios, clubes.
 
Para lembrar o meu pai, montam e desmontam tipografias. Onde está a letra? O tipo? O acento? A cadeia das letras junta toques, sons. Um quebra-cabeça de memórias.  
Ver uma letra avulsa me leva ao texto impresso, jornalístico. Me leva à montagem tipográfica.
 
Para lembrar o meu pai, brotam gráficas, com cartazes, folhetos, painéis, anúncios funerários, propagandas, filipetas.
Papeis coloridos, tiras, recortes, papelotes que viravam bandeirinhas, cartas, barcos, dobraduras.
Aprendi um olhar de papel que não me abandona.
 
Para lembrar o meu pai, sopram folhas, raízes, cascas... tinturas e óleos que curam. Pesquisas, colheitas, conservas, escutas.
Um dia, entendi que ele era um escutador de relatos, de histórias, de causos, de queixas.
Traduzia, em palavras, o que ouvia dos outros.
 
Para lembrar o meu pai, o braço, a lente de olhos arregalados, o riso fácil. Lentas, as letras embaçadas abraçam o tempo.
 

(Foto: arquivo de família)